sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O Filhinho da Mamãe

Sem dúvidas, um texto muito difícil de escrever. Não consegui contar um pouco a história de minha mãe, sem deixar de falar da minha história também. Elas se fundem! Apreciem e comentem...
 As primeiras lembranças que tenho, datam de um tempo em que eu nem sabia que ela era minha mãe. Não sei explicar. Quando toda família veio em peso pra São Paulo, na década de 70, liderados por minha mãe; eu e meu irmão éramos cuidados por minha vovó Chica, enquanto minha mãe ia trabalhar! Não sei se isso nos distanciou, já que não tinha pai... Lembro-me pouco de minha mãe, naquela época eu devia ter uns 04 anos . O mais gozado é que eu e meu irmão chamávamos nossa vó de mãe e nossa mãe pelo apelido dela: “Dina”!
A história dela foi a seguinte: Era a quinta filha, a única mulher de cinco irmãos. Desde cedo sofreu sendo criada por uma mãe autoritária e severa, em uma época em que mulher não tinha direito a nada. Herdou da família, o gênio forte, a raça, o orgulho e o destemor! Desbravadora, gostava de arriscar e descobrir coisas novas. 
Tinha uma pele parda, cabelos pretos bem lisos, sorriso farto e dentes perfeitos. Acredito que era uma mistura de índio com negro, por causa dos descendentes de vovó. Não tenho fotos de sua juventude. Já mocinha era sonhadora e demonstrava bom gosto, usando aqueles vestidos rodados da época. 
Conta minha vó, que ela era muito assediada pelos rapazes da época, mas meus tios não deixavam que qualquer um se aproximasse. Então, eu fico imaginando, como deve ter sido difícil para ela, criada por uma mãe tão castradora e por irmãos, tão repressores, eu diria...
O fato é que, em sua primeira viagem a S.Paulo, vigiada e cercada pelos tios Colá, Dezinho e Beto; ela é cortejada por um amigo deles, que aprovaram o namoro. Em pouco tempo, se casou com a ilusão de que conseguiria a sonhada liberdade. O resultado infelizmente foi um casamento desastroso. Foi traída e abandonada com um menino de colo, meu irmão. Retornou para a cidade de Macaúbas, interior da Bahia onde tentou recomeçar sua trajetória. 
Quatro anos depois, conheceu um trabalhador, retirante de outra cidade, que veio pavimentar as ruas; com quem teve um “caso amoroso”. Só que desta vez foi pior, não casou e foi abandonada novamente com uma criança no ventre. Para não ficar difamada, mudou para a cidade vizinha, Boquira, onde teve um menino “alvinho da bunda vermelha”, totalmente diferente de todos os outros membros “cafuzos” da família: “Euzinho”.  
Em seguida teve um romance com um engenheiro de mineração, com o apelido de “Chileno”, não por acaso ele mesmo era do Chile. Devido aos grandes minérios, a cidade recebia estrangeiros grande parte oriundos da America do Sul.
Muitos pensavam que esse “Chileno” era o meu pai, por causa da cor branca. Ele chegou a propor para minha mãe que fosse morar com ele no Chile, mas que deixasse a criança aqui. Ela intempestivamente recusou e o abandonou. Confesso que, toda vez que ouvia esse fato, contado por minha vó, ficava com raiva de minha mãe; deve ter sido a primeira grande burrada que ela fez!
O começo em S.Paulo, eu crescia e recebia atenção de minha vó e do meu tio Beto, especificamente. Lembro-me que foi ele quem me deu o primeiro carrinho.  Eu e meu irmão recebemos o mesmo carinho e atenção. Não sei se por ter sido criado pela minha vó, não chamamos nossa mãe de mãe. È claro que ela sofreu calada. Minha vó me orientava a fazê-lo, mas só aconteceu quando eu tinha 08 anos. Já meu irmão, nunca a reconheceu como mãe. Revoltado ele se enveredou por um caminho tortuoso de rebeldia, fazendo minha mãe sofrer muito. Tempos difíceis: de reclamações na escola, dos vizinhos, furtos, internações em reformatórios, fugas, surras, roubos, prisão e morte.
Acompanhei tudo isso, vendo o sofrimento dela, sendo seu fiel escudeiro, tentando ser o oposto do meu irmão. 
Lembro-me de muitos pretendentes a “papai”, mas nenhum aprovado para o cargo. Na semana em que completaria 09 anos, pisei em um prego e furei o pé. Tomei vacina e comemorei sentado na mesa, comendo bolo de chocolate, preparado por minha mãe. Que na época namorava um pernambucano alto, forte, belo e educado. Torcia para que ela ficasse com ele. Mas ele não me queria por perto e mais uma vez, ela se decidiu por mim, cometendo seu segundo erro. Coitada, fez inúmeras tentativas para me dar um pai e todas fracassaram, vai entender as coisas do destino. Contrapondo com tudo isso, ela arrasava nos doces e salgados. Cozinheira de mão cheia aprendeu tudo sozinha, pois não sabia ler nem escrever.  Aprendeu vendo os outros fazerem ou assistindo pela televisão! 
 Posso dizer que nunca faltaram guloseimas e gostosuras em casa, apesar do dinheiro raro e curto! Nunca senti falta de comida e educação. Seu cuidado para comigo era irritante! Tinha medo que eu seguisse o mesmo caminho do meu irmão. Em virtude disso, recebia atenção dobrada, cuidados excessivos. Mimado, reservado, não brincava com os outros meninos na rua. Ficava sempre preso na barra de sua saia, seguro num “cabresto invisível”. Fazia de tudo para que eu estudasse, me formasse e fosse alguém na vida.  Minhas funções eram: cuidar da casa e estudar. Depois passei a acompanha-la indo para o trabalho. Sua vida toda foi isso, trabalhar, “faxinar”, cozinhar. Nunca a vi com amigas ou recebendo visitas em casa. Era fechada, como se não tivesse mais alegria para conviver ou compartilhar sua vida, com outras pessoas. Estava sempre querendo fazer algo pela família. 
 Minha família sempre foi estranha nas relações, briguenta e distante. Só nos reuníamos em data especificas e nas festivas, mamãe sempre fazia o prato principal e a sobremesa.  Essa cena resume bem o que foi minha mãe, trabalhar e cozinhar foram seus lemas. Além de se preocupar comigo!
Entre preocupações, cuidados e inseguranças, ela, orientada por uma “grande patroa e amiga” decidiu me colocar na “Marinha”, quando eu tinha 16 anos. Foi nossa primeira separação, eu achava que seria bom, foi muito pior. Colocado em um quartel com mais de 300 meninos, foram inúmeras sensações de vazio, insegurança e temores. Não aguentei e quase 01 ano depois, pedi para ser dispensado, provocando a primeira grande decepção para minha mãe. 
Ao retornar, o mundo já tinha outra imagem dentro de mim. Não me sentia bem morando com minha mãe e surgiram as primeiras grandes discussões. Eu tinha vergonha por ela não saber ler, nem escrever. Brigávamos muito por isso. Diversas vezes tentei ajudá-la. Comprei um caderno de caligrafia, sentamos juntos, líamos juntos, procurava de alguma forma ajudar, sem saber ao certo o que fazer! No ano seguinte tive que me alistar no “Exército” e acabei servindo. Foram 09 meses de revoltas, desacatos, infrações, punições e finalmente quando fui expulso, causei a segunda grande decepção em minha mãe.
Confuso e perdido, decidimos que seria melhor que eu fosse tentar me encontrar em outra cidade. Então com 20 anos, me separei de minha mãe pela segunda vez.
Essa foi a grande virada em minha vida. Ficamos longe um do outro durante 03 anos, quando ela descobriu que eu estava morando com outro homem. Pra ela era inadmissível. Saiu de S.Paulo e chegou de surpresa em Salvador e ficamos morando juntos por 03 meses. Ela fazia bolos e vendia na Lanchonete da esquina!  Eu trabalhava no Bradesco e pedi transferência para a cidade de Vitória da Conquista, aluguei uma casa e moramos lá durante 09 meses. Tentamos uma nova empreitava em Conquista; trabalhava no banco, jogava bola com meus colegas e namorava garotas. A vida seguia "normal" até ela descobrir que eu estava fumando maconha e andando com “más companhias”. Foi a terceira separação. Desta vez mais longa, ficamos 04 anos sem nos falar! Nesse tempo todo, eu mandava pouco dinheiro para ela, que se virava sozinha, trabalhando, de faxineira e cozinheira!
Retornei com 27 anos, com uma grande vontade de “mudar nossa história”, passando por problemas existenciais, me encontrei em uma igreja evangélica. Isso causou resistências  por parte de minha mãe, que sempre foi agnóstica.
Nossa reaproximação foi cheia de ressentimentos, mágoas e doenças. Já cansada e sofrida, recebeu diagnóstico de “câncer”; ficamos “sem chão”, sem preparo e nenhuma informação, lutamos juntos contra a doença. Tempos de perdão, de reconciliação e de verdades. 
Todos os dias ia visitá-la e tentávamos conversar de forma amigável. Tentei recuperar o tempo perdido, mas não consegui, sinto que faltou algo, que poderia ter feito diferente. Numa manhã fria de junho de 1990, com 55 anos, ela faleceu sozinha num leito de hospital. Na época eu tinha 30 anos. Quando cheguei para visitá-la,  vi seu corpo inerte na cama, me aproximei e sua expressão com os olhos abertos, foi a última imagem que ficou gravada em minha mente e senti uma dor tão profunda que até hoje ainda dói, toda vez que penso nela, agora mesmo escrevendo essas mal traçadas linhas. 
O sentimento de culpa, muitas vezes me trouxe pesadelos aprisionantes.
Hoje tento guardar as coisas boas que ela deixou em mim! 
Mas isso... é uma outra história...

12 comentários:

  1. Impossível não terminar com lágrimas, excelente relato de bem a lá "Nelson Rodrigues" "A vida com ela é". A história de todos nós, o que bem pouco sabem contar pela escrita. Parabéns! Beijos

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  2. Sim a Vida como ela é! Bem Rodrigueano o post mas de uma sensibilidade ímpar ... muito bom poder compartilhar destas emoções ... e as fotos então ... impagáveis ... tenho milhões de fotos do gênero ... rs

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    1. Obrigado amigo Bratz... quero ver suas fotos, sou apaixonado por fotos, principalmente as mais antigas!!! Beijão

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  3. Compartilho da opinião do seu amigo Paulo....Foi do jeito que vcs sabiam ser....

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    1. Lé.... que maravilha sua visita aqui no meu blog....fico muito feliz!!!

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  4. Retribuindo sua visita e me deparando com um post tão emocionante; Minha relação com minha mãe é muito especial, ela é meu porto seguro...inclusive uma de minhas próximas postagens será sobre ela, com direito a fotos antigas e tudo mais...tenho muitas...rs
    Um grande abraço!

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    1. Agradeço e fico na expectativa esperando seu texto sobre sua "mama"...grande abraço

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  5. Relações familiares são mais complicadas do que gratificantes em muitos casos, como no meu por exemplo. Não sei se sentiu culpado por ser gay e ter sentido que isso foi um desgosto para sua mãe. Eu já senti isso em relação a minha com a questão de ser trans, mas hoje em dia vejo que tudo foi do jeito que dava para ter sido. E mesmo que eu fosse toda encaixada nos padrões, será que alguma coisa teria mudado?

    Belo texto, querido, muito sensível!

    Beijocas

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    1. Ah sim, tive diversos sentimentos de culpa... antes e depois dela ter falecido...(o que foi muito pior)... mas "c'e la vie"! tudo foi do jeito que deveria ter sido, hoje entendo que serviu de aprendizado para muitos dos nossos familiares! Agradeço sua visita e vou ficar na expectativa do seu texto, sempre tão edificante! Grande beijo

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  6. Obrigado por dividir conosco seus momentos tão íntimos e especiais, eu sempre viajo no universo de outras pessoas, e aprendo muito com isto.

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    1. Eu que agradeço seu carinho. Aqui tenho recebido incentivos não só através dos comentários de todos, mas principalmente pelo que leio nos outros blogs (como o seu por exemplo). Sinto que há uma troca espontânea de experiências que são edificantes para mim! Grande abraço

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Muito do que aprendi na vida, foi convivendo e trocando experiências com outras pessoas. Agradeço sua visita e seu comentário. Seja bem vindo !!